JOÃO PEREIRA COUTINHO
FOLHA DE SÃO PAULO, TERÇA-FEIRA, 02 DE JULHO DE 2013-07-02
Ao ler esse artigo de Coutinho, minha memória se volta para
2004, onde escutei de um determinado professor a expressão “café com leite”.
E de outro, cenho franzido, a boca entreaberta, mostrando os
dentes num esgar, o comentário que estava preocupado com as boas maneiras na
Festa da Formatura que ia acontecer no salão de um clube social de filhos de
proletários, ex-braçais.
“Café com leite” era eu, as voltas com as minhas cartolinas,
dando um seminário sobre Alfabetização Cartográfica, com a minha querida
Professora Arlete Menegheti e a minha
oralidade e seriedade e fé na Educação salvou a simplicidade e a precariedade
do meu material de seminário, onde os outros, já com bolsas ou o dinheiro do
papai, se impunham com projetores e transparências.
Lembro-me da minha irmã, que desistiu do Curso de Geografia no
último ano e cravou na cabeça a certeza que cada um com o seu o que, que ela
tinha mesmo jeito e cara de braçal e que os espaços sociais estão delimitados.
Uma pessoa que me ensinou a ler e a gostar de livros, que me
apresentou Sidney Sheldon, Agatha Christie , Lou Carrigan, Collen Mc Cullough,
Elisabeth Badinter, Shakespeare,( líamos Tex Willer ) me falava de Martin
Luther King, de Deus e do diabo, me levou uma ou duas vezes ao cinema e me falava de filmes americanos. Uma pessoa
culta, aliás. Música, só as estrangeiras, tinha predileção por Dire Straits.
Mas a pressão do social e as agruras da sua vida proletária,
a sua imagem e representação a levou bem longe de uma carreira acadêmica. A sua
verdade é que ela não quis ser amestrada, porque ela é muito inteligente e
culta, porque a “imagem caricatural do filho do operário fabril que só consegue
ser feliz e autêntico no meio dos livros “ (Coutinho, p.E6) nunca lhe serviu,
pois não precisa de um padrão burguês para entender e fazer inferências de um
livro de Nietzsche, e é uma “proletária que não vive sem livros (idem).”
Cada um escolhe seu caminho e se ela abriu mão de vestir
essa armadura de burguesa de geógrafa ou Professora de Geografia. O seu ponto
de vista sobre o sistema de ensino a fez, de uma maneira muito cortante e
franca, arrumar inimizades dentro do Campus e nas escolas, já que vê todos os
seres humanos como eles são e a vida, como ela é.
Coutinho se esqueceu de dizer que alguns acadêmicos e elite pagam para que suas teses ou dissertações
sejam feitas, e que quando um afrodescendente tem a oportunidade de ocupar um
lugar social, ele estuda até cambalear de sono,pois aquela é a sua única chance,
a sua única oportunidade.
Não nego que sou de origem proletária e muitas vezes me
senti como um bicho exótico sendo apreciado pelos bons burgueses condescendentes.
Uma pequena flor, café com leite.” “Pequena flor”, de Clarice Lispector, foi
por um bom tempo, meu texto preferido, porque eu me identificava e me divertia,
com aquela sensação de ser um brinquedo,
um acessório para a elite. Mas claro que o novelo só rolava no tapete quando,
cansada de ser um brinquedo na pata do gatinho , virava jararaca ou surucucu
cruzeiro. Não sou adestrável. Como conheço os dois lados da moeda sei os atos
falhos dos burgueses politicamente corretos, a sua condescendência, a sua hipocrisia, a “sua boa vontade”,
laureada por olhares piedosos.
Cada um dentro da sua “casinha”, os proletários fingindo que
estão aprendendo dentro de um sistema de ensino que não os favorece e os
burguesinhos se posando de bonzinhos, tolerando “aquela gentalha café com leite”
, os discriminando e rindo deles pelas costas.(Ando lendo demais o Pondé, que
tem a língua afiada, misericórdia, não é
politicamente correto.)
Cabe a mim fazer o papel de advogada do diabo.A mudança já
começou,o paradigma já se modificou. Quando se deu a primeira vez na voz de um proletário,
o acesso a um banco escolar, professores
transmitindo a ele o ensino, ainda que achando
que eles de nada aprenderiam e captariam, os elos da corrente se partiram.
Na nossa infância difícil, onde a única luz era a fantasia
dos livros dessa irmã, desmitificando os padres e sua sexualidade com o romance
do personagem Ralph de Bricassart, a suavidade de Meggy Cleary, a firmeza de
Fiona (Fee) Cleary (mão de ferro em luva de veludo), a bebedeira de Paddy
Cleary , paixões proibidas e tudo o que não pode ser.
Como a arte imita a vida, escândalos na comunidade rural, a
catequista namorando, manchas no seu pescoço, o padre que celebrou nossos
batismos largando a batina e casando-se com a filha do sitiante.
Hoje, talvez influenciada pela história de Ralph e Meggy, outra
irmã e seus filhos foram conferir de
perto a poeira vermelha da Austrália, quem sabe encontrar Drogheda, onde... “E a própria terra: nua,
inflexível em suas exigências, brilhante nas suas florações,
presa de ciclos gigantescos de secas e cheias, rica quando a natureza é dadivosa, surrealista como nenhum outro lugar na terra”.
Amestrar
proletários é inútil. Seu universo particular é bem mais rico, eles cavoucam do
chão o sal da sua sobrevivência, e isso inclui cultura.
Sou uma
sobrevivente nesse mundo. Concluí o Curso, conheci professores maravilhosos na
Faculdade que me apoiaram e viram em mim além de uma proletária a ser amestrada,
cavouco fervorosamente um Mestrado na melhor Universidade de Assis, a pública. Não
sei se vou conseguir.
Há um pouco de
Drogheda em mim, porque ela foi o meu alimento.
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