Tenderness
Quando era criança, num almoço de Natal, ficou curiosa para
saber o que significava Tender.
Era apenas mais uma carne que mamãe assaria e com certeza,
com os olhos rasos de água, fingiria uma felicidade por sobre a borda do copo
de cristal com um vinho perfumado que ela não poderia beber por causa da idade e brindaria a sua solidão de mulher
largada e fazer de conta que papai estava por ali, fumando o seu cigarro com
cheiro dementa, contrabandeado e que iria até a cozinha virar as batatas e
beslicar a torta de morango,sorrindo-lhe com paciência e ternura, pois ela era
muito lenta para preparar o almoço e papai perdoava sempre ela, porque era uma
exímia vendedora e com seus lucros abastecera a casa com todas as engenhocas
modernas, com os risos e a bagunça de crianças em volta do vídeo game.
Então, numa tarde de outono, ele se fora. Chegou da rua, com
seu cheiro adocicado de menta, a sua
barba por fazer, a camisa amarfanhada e chamou-a para uma conversa que ela
nunca teria querido ouvir e que tentou disfarçar, esmagando sua
dor sobre um sorriso torto , avisando-o que naquele dia o almoço estava pronto
e ele não quis ouvir e nem almoçar e depois de uma conversa rápida, em que ele
explicou em pequenas palavras o que acontecera, atravessou o apartamento com
passos rápidos e nunca mais voltara.
Ajudara-a com muito dinheiro. Havia lhe deixado uma gorda
poupança e passara para o nome da família dois imóveis bem localizados.
Mas mamãe era uma pessoa triste e patética. Porque ficara
aturdida e não conseguira entender o que se passara pela cabeça de papai e por
mais dinheiro que ele havia deixado, seus olhos sempre seriam rasos de água,
seu sorriso sempre seria torto, sua solidão sempre seria maior que os anos
felizes que papai havia lhe dado.
Eleonora cresceu nesse lar assim, de coração partido e da
lembrança da dor nos olhos de mamãe. Jamais poderia amar um homem, pois os
homens haveriam de fazer com ela e com elas o que papai fizera com mamãe.
Cresceu misturando fome de alimento com fome de amor e
odiando a palavra Tender. Pois foi aquele almoço específico que mamãe,
aturdida, filtrara sua dor e desabou sobre o prato, chorando de olhos fechados,
os punhos fechados, com um lamento alto e fino, extravasando toda sua alma, as
crianças assustadas, a vovó consumida de pena pela filha , o desabafo, a ferida
exposta.
Comer, para ela era somente o essencial. Um trauma naquele
almoço de Domingo, em que a mãe descobrira o humano de papai e que perdera
tudo.
Ela era esguia, seios diminutos, cintura finíssima, ancas
largas, e usava o cabelo curto,rente, Maria cabeluda como a mãe jamais seria.
Eleonora nunca mais comera aquele tipo de carne e aprendeu a
desconfiar das pessoas, jamais seria tão patética como sua mãe fora.
Mal sabia ela que a sua precaução a tornara bem mais
patética, porque ela fugia do inevitável.
Quando tinha 15 anos enamorara-se de um rapaz, que fazia caminhadas no Ibirapuera quando ela ia
lá de bicicleta..
Não queria saber desse sentimento, pois embora fosse nova, não
iria dar o braço a torcer.
Um dia, chegou uma caixa pelo Correio. Uma caixa média, com
um celofane amarelo dentro.
Uma caixa de bombons de licor, uma rosa em botão e um cartão
escrito em inglês.
Intrigada, leu:
I'll be hoping that we find ourselves at a glance, captured my soul to yours. Walk on a floor of stars on to eternity
Tenderness
Tenderness
Aquilo lhe deu pavor. TENDER? NESS?
Pateticamente, reviveu a dor da mãe, chorando miseravelmente
sobre o Tender e lembrou-se do pavor que sentira quando soubera do monstro que
morava dentro de um lago.
Viu papai sorrir-lhe maldosamente, com seus dentes caninos,
e pensou que ia desmaiar.
Correu até o lixo e jogou a caixa dentro, limpando as mãos
freneticamente.
Sobre a sombra de um ipê rosa, no Ibirapuera, parque de
referencia e memórias, deu seu primeiro beijo.
Como se despertasse de um pesadelo, aquele abraço quente e
acolhedor a redimiu de todas as suas dores.
Falou-lhe tudo, de mamãe, de papai, do tender, do tenderness, do lago, do monstro,
e na sua ingenuidade, nem poderia imaginar que aquele estranho pensaria que ela
era um pouco louca.
Mas ele riu. Ele riu muito e caçoando dela, pediu-lhe para
não crescer jamais.
Sete meses de namoro e um casamento.
E ele a fizera feliz.
Mamãe, já grisalha, conheceu o amigo e despediu-se do
fantasma de papai, partindo as suas
correntes e jogando-as no forno onde assara alegres tenders e
lombos de porco
com maçãs na boca, troçando da vida e comemorando a cada noite bem
dormida os anos de solidão e os cabelos grisalhos que papai lhe deixara.
Atualmente, Eleonora se alimenta com a voracidade que os
anos de cativeiro na memória triste e embaçada de papai lhe tirara.
Suas curvas esbeltas dão lugar a robustez de um corpo
nutrido e amado com perfeição.
Parou de trabalhar e se entregou aos prazeres da vida de
casada que se transformarão em desprazeres.
Talvez, quando a morte ceifar o seu par, ela conheça a dor e
se tornará tão patética quanto a mãe já fora.
Chorará sobre uma ceia triste, lamentando a dor da perda, da
voracidade inexorável da vida que mortifica a tudo.
Mas essa possibilidade para Eleonora é remota.
Alimenta-se bem, de orgulho e de prazer.
Tenderness.Eternity.
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