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terça-feira, 8 de maio de 2012


Tenderness





Quando era criança, num almoço de Natal, ficou curiosa para saber o que significava Tender.
Era apenas mais uma carne  que mamãe assaria e com certeza, com os olhos rasos de água, fingiria uma felicidade por sobre a borda do copo de cristal com um vinho perfumado que ela não poderia beber por causa  da idade e brindaria a sua solidão de mulher largada e fazer de conta que papai estava por ali, fumando o seu cigarro com cheiro dementa, contrabandeado e que iria até a cozinha virar as batatas e beslicar a torta de morango,sorrindo-lhe com paciência e ternura, pois ela era muito lenta para preparar o almoço e papai perdoava sempre ela, porque era uma exímia vendedora e com seus lucros abastecera a casa com todas as engenhocas modernas, com os risos e a bagunça de crianças em volta do vídeo game.
Então, numa tarde de outono, ele se fora. Chegou da rua, com seu   cheiro adocicado de menta, a sua barba por fazer, a camisa amarfanhada e chamou-a para uma conversa que ela nunca teria  querido  ouvir e que tentou disfarçar, esmagando sua dor sobre um sorriso torto , avisando-o que naquele dia o almoço estava pronto e ele não quis ouvir e nem almoçar e depois de uma conversa rápida, em que ele explicou em pequenas palavras o que acontecera, atravessou o apartamento com passos rápidos e nunca mais voltara.
Ajudara-a com muito dinheiro. Havia lhe deixado uma gorda poupança e passara para o nome da família dois imóveis bem localizados.
Mas mamãe era uma pessoa triste e patética. Porque ficara aturdida e não conseguira entender o que se passara pela cabeça de papai e por mais dinheiro que ele havia deixado, seus olhos sempre seriam rasos de água, seu sorriso sempre seria torto, sua solidão sempre seria maior que os anos felizes que papai havia lhe dado.
Eleonora cresceu nesse lar assim, de coração partido e da lembrança da dor nos olhos de mamãe. Jamais poderia amar um homem, pois os homens haveriam de fazer com ela e com elas o que papai fizera com mamãe.


Cresceu misturando fome de alimento com fome de amor e odiando a palavra Tender. Pois foi aquele almoço específico que mamãe, aturdida, filtrara sua dor e desabou sobre o prato, chorando de olhos fechados, os punhos fechados, com um lamento alto e fino, extravasando toda sua alma, as crianças assustadas, a vovó consumida de pena pela filha , o desabafo, a ferida exposta.
Comer, para ela era somente o essencial. Um trauma naquele almoço de Domingo, em que a mãe descobrira o humano de papai e que perdera tudo.
Ela era esguia, seios diminutos, cintura finíssima, ancas largas, e usava o cabelo curto,rente, Maria cabeluda como a mãe jamais seria.
Eleonora nunca mais comera aquele tipo de carne e aprendeu a desconfiar das pessoas, jamais seria tão patética como sua mãe fora.
Mal sabia ela que a sua precaução a tornara bem mais patética, porque ela fugia do inevitável.
Quando tinha 15 anos enamorara-se de um rapaz, que  fazia caminhadas no Ibirapuera quando ela ia lá de bicicleta..
Não queria saber desse sentimento, pois embora fosse nova, não iria dar o braço a torcer.
Um dia, chegou uma caixa pelo Correio. Uma caixa média, com um celofane amarelo dentro.
Uma caixa de bombons de licor, uma rosa em botão e um cartão escrito em inglês.
Intrigada, leu:
 I'll be hoping that we find ourselves at a glance, captured my soul to yours. Walk on a floor of stars on to eternity

Tenderness

Aquilo lhe deu pavor. TENDER? NESS?
Pateticamente, reviveu a dor da mãe, chorando miseravelmente sobre o Tender e lembrou-se do pavor que sentira quando soubera do monstro que morava dentro de um lago.
Viu papai sorrir-lhe maldosamente, com seus dentes caninos, e pensou que ia desmaiar.
Correu até o lixo e jogou a caixa dentro, limpando as mãos freneticamente.
Semanas passaram-se.

Sobre a sombra de um ipê rosa, no Ibirapuera, parque de referencia e memórias, deu seu primeiro beijo.
Como se despertasse de um pesadelo, aquele abraço quente e acolhedor a redimiu de todas as suas dores.
Falou-lhe tudo, de mamãe, de papai,  do tender, do tenderness, do lago, do monstro, e na sua ingenuidade, nem poderia imaginar que aquele estranho pensaria que ela era um pouco louca.
Mas ele riu. Ele riu muito e caçoando dela, pediu-lhe para não crescer jamais.
Sete meses de namoro e um casamento.
E ele a fizera feliz.
Mamãe, já grisalha, conheceu o amigo e despediu-se do fantasma de papai, partindo as suas  correntes e jogando-as no forno onde assara alegres tenders e lombos   de  porco  com maçãs na boca, troçando da vida e comemorando a cada noite bem dormida os anos de solidão e os cabelos grisalhos que papai lhe deixara.
Atualmente, Eleonora se alimenta com a voracidade que os anos de cativeiro na memória triste e embaçada de papai lhe tirara.
Suas curvas esbeltas dão lugar a robustez de um corpo nutrido e amado com perfeição.
Parou de trabalhar e se entregou aos prazeres da vida de casada que se transformarão em desprazeres.
Talvez, quando a morte ceifar o seu par, ela conheça a dor e se tornará tão patética quanto a mãe já fora.
Chorará sobre uma ceia triste, lamentando a dor da perda, da voracidade inexorável da vida que mortifica a tudo.
Mas essa possibilidade para Eleonora é remota.
Alimenta-se bem, de orgulho e de prazer.
Tenderness.Eternity.




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