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domingo, 6 de maio de 2012

Ficção da escola de Nelson Rodrigues

Fragilidades e sobrevidas





Estava amadurecendo. Resolveu não acreditar em bruxas, duendes e fadas. Não acreditava mais em papai Noel, aquele velho decrépito, nem em Peter Pan e a Terra do Nunca.
Desdenhava de Chapeuzinho Vermelho, que viu o lobo comer a vovó, quando , entre fascinada e enojada, entreviu a mãe que a mãe fazia mais coisas com o pai do que supunha a sua vã filosofia. Nada viu, pressentiu pelos gemidos altos.
Existem mulheres que avisam os vizinhos e a polícia quando estão deflagrando sua parte animalesca.
De poético, o sexo só tinha o que teimava em acreditar a subjetividade. È adrenalina pura. É  o apelo a carnalidade, o ato reprodutor, pro criativo, com a finalidade de juntar duas metades biológicas que anteciparam a urgência hormonal e obedeceram os sinais dos feromônios.
Estado, igreja, sanções sociais. Era uma cidadã do bem.
No seu empreguinho de telefonista, tinha que fechar as pernas, apertando-as quando aqueles olhos verdes capturavam o seu olhar.
E em meio a lascívia e as mulheres de bunda de fora nas praias do Rio de Janeiro, entre bombas e Brigite Bardot, como dizia o bom e velho Caetano, a sua saia tinha a barra alongada pela costureira da mãe, a Dona Tereza e a sua libido era exercida entre pudores e vergonhas, medo do inferno, medo da morte, daquele senhor de barbas brancas que iria mandá-la para o inferno se não fosse uma menina boazinha...
E se não parasse de se tocar entre as cobertas finas  e puídas que o seu salário comprava.
Encontrou a consumação do ato repugnante em uma lua de mel morna nos braços daquele noivo /marido de gestos mecânicos, que a deixou com culpa, medo, vergonha, remorso e sentindo-se um quase nada.
E era aquilo?
A Bênção da igreja, a aprovação social, os convivas, a chuva de arroz, o lenga a lenga das comadres, os pigarros dos compadres e ela ali, roxa, morta de vergonha, com dores em locais que não tinham sido nomeados, culpa, culpa, culpa. Medo, medo, medo. Desânimo total.
Mas a sua alma era bem livre, bem distinta daquele inferno imposto pelos liames de um processo de civilidade que não tinha criado.
E quando o seu manifesto surgiu, três anos depois de  uma união cômoda, (depois ficou suportável)resolveu pagar o preço da sua liberdade.
Abriu a porta. O ar fresco da manhã a revigorou. O cheiro de café recém coado da vizinha da frente, uma velha que fazia tricô e criava uma família absurda de gatos, deu-lhe um novo ânimo.
Ali, do outro lado da rua, em um ponto de ônibus, os braços fortes cobertos por uma camisa xadrez, os cabelos loiros sentindo a brisa, os olhos verdes, brilhantes e enigmáticos.
Sentiu uma quentura esquisita e uma umidade imperfeita. Avançou mais um passo.
Outro passo. E outro.
Ele sorria. Parecia miragem, como ele soubera?
O estrondo que se ouviu depois jogou sua consciência em um caleidoscópio vértice e ela desabou para a queda, semi-esquecida da malinha marrom que tinha sido dada pela comadre da sua mãe.
Seu corpo balançou-se e numa eternidade, como se dançasse um passo de um ballet grotesco, estatelou-se no chão e sua mão fina e frágil sentiu a viscosidade de um sangue vermelho rubro que saía aos borbotões da ferida recém aberta e ela soube que chegara ao destino.
Não era criadora. Nunca fora, era criatura manipulada por um jogo de poder maluco, e uma carta havia sido tirada fora do baralho.
Perdeu a consciência e o moço de camisa de flanela, com um ar indiferente, comentou alguma coisa com o motorista do ônibus e com um meio sorriso, jogou o embornal nas costas e distanciou-se dali, olhando sem ver uma boneca de trapos, se esvaindo em sangue na porta de um apartamento térreo de um Conjunto habitacional.


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