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quinta-feira, 27 de maio de 2010

Um jantar


Codornizes ao molho de rosas

I




Um jantar, apenas. Estava ansiosa. Ao receber o convite, quase não acreditou. O incrível escritor Waldir Velasco havia lhe enviado o convite com um botão de rosa branca, fechado, e um convite de cor azul, levemente cheirando a incenso.

Ela mesma estava se acostumando com a fama, os bons jantares, os requintes da vida social.

Iria. Usaria o seu longo preto, de cetim aveludado, comprado especialmente para ocasiões glamourosas como aquelas.

Teria que saber usar os talheres. E isso era o mais difícil. Estava aprendendo a se comportar socialmente e não via sentido em tanta etiqueta, em tanto requinte.

Ninguém havia descoberto ainda que ela era  uma farsa. Uma pobretona. Uma nova rica com uma história pouco convincente de pedigree francês.

Na verdade, havia nascido no Bairro do Limão, São Paulo.

Madame Adele, na verdade era Adineuza , Adriana da parte da mãe, Neuza da parte do pai.

Mas isso era passado. Ela queria mesmo era se divertir, com um tinto francês e o luxuoso jantar de Velasco.

Do outro lado da cidade, a procura furiosa no armário de roupas teve um saldo muito negativo: dois surrados ternos cor de chumbo, com um cheiro de naftalina imperdoável. A camisa branca de linho fino, comprada há décadas no mercado de pulgas em Paris, estava com a gola um tanto quanto puída.

Ele não tinha outra opção, entretanto. E não podia perder aquele jantar.

Fazia muito tempo que não era chamado para atuar em papéis, Nem a televisão, nem o cinema, nem o Teatro.

Se conseguisse ao menos um instantâneo ao lado de Velasco, ou se conseguisse flagrar uma situação pitoresca, venderia para o folhetim Comigo e ficaria em evidência. Choveriam convites. Choveria dinheiro.



II



O trânsito estava empacado. Tinha que chegar em casa, tomar um banho relaxante e ir ao encontro do querido amigo Velasco.

Verificou pela milésima vez se havia trazido um exemplar de seu último livro, “Martas entre figos”. Olhou para ver se já havia autografado.

Sensação estranha, aquela. A sua assinatura em um livro seu, da sua mente, estava se tornando cada dia mais famosa e importante.

Vaidade é ouro de tolo.

Mas não conseguia evitar esse apreço imenso por si, agora que era uma importante e notória figura pública.

E o carinho que o amigo Velasco lhe despertara era muito além das rasgações de seda e dos salamaleques do ethos social.

Surpreendente o convite. Irradiante o jantar. E a garrafa de vinho, bom vinho estava ali, dentro do balde de gelo, ansiando para ser descoberta, saboreada,o sabor da vida.Saber o sabor da vida.Prazer, Baco.

Fantasia dionisíaca. E quem sabe, por aquela noite, seria brindado pelo vinho doce de Afrodite. O coração estava precisando.



III

E Velasco estava desesperado. As pobres perninhas das codornizes amarradas lhe dava a dimensão exata do ridículo humano.

Arrependera-se até o último fio de cabelo em ter programado esse jantar. Havia um complô dos deuses contra ele, agora tinha certeza.

Do pneu furado do carro até o ponto errado do molho de rosas.

E rosas...Ah, bendita rosas.

Se os seus convidados soubessem aonde tinha conseguido aquelas rosas, o amaldiçoaria até a ultima geração.

Provavelmente, deveria estar com um parafuso solto.

Mas no convite já havia especificado o cardápio. E aquela hora em São Paulo, difícil arrumar um ramo de rosas frescas para o molho das codornizes.

Não que as rosas que estavam ali estavam propriamente frescas. Um jarro de água e um pouco de otimismo.

Era tudo o que precisava.

Brancas, azuladas, amarelas, profusões e profusões de rosas.

Mas nenhuma rosa vermelha.Só na lápide do cemitério.

E que cheiro era aquele?Desesperado, constatou que o bolo tão carinhosamente preparado estava queimado!

Céus! Mais do que depressa, muito atrapalhado, tirou o bolo da forma e com uma espátula,  aproveitou o que pode.



IV



O jantar, ah, o jantar...

Foi constrangedor. Angustiado, percebeu nos rostos tensos dos convidados que aquela comida estava uma porcaria.

E o ápice da noite foi quando madame Adele pediu, sem muita cerimônia, um pão de hambúrguer e gastou o restante do molho branco empapando o pão e comendo com uma voracidade pouco elegante.

Tosses polidas, rostos abrasados, mãos retorcidas, muxoxos.

Velasco queria que o solo e abrisse embaixo dos seus pés e o tragasse.

De tão envergonhado, não percebeu o cheiro de naftalina disfarçado por um perfume caro no paletó do belíssimo convidado e nem pode apreciar o exemplar do mais novo livro do amigo Charlie, em parceria com o pastor Sálvio, “Martas entre figos”;

O Pastor não pode comparecer, devido a agenda cheia.

E Deus seja louvado. Pois se o pastor aparecesse, claramente haveria de querer dar um jeito espiritualizado na situação.



V

Bem, Velasco se prepara para dormir. E ele jura, olhando furiosamente para a fumaça do seu charuto, nunca mais se meter a coisas de cozinha.

Coisas de cozinha são  da alçada de Nina Horta.

Talvez a única pessoa de verdade dessa história. A única inteira.

Seu métier era escrever.

Ainda bem que a noite acabou. E nada  como um dia depois do outro.

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