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quinta-feira, 17 de maio de 2012

O ranço do colonialismo na cultura brasileira


Colonialismo, para mim, é aderir aos valores advindos da cultura dos dominados face aos dominantes.
A cultura brasileira tem escritores que tem uma linguagem racista que vão impregnando e cristalizando o racismo e os seus filhotes que são a opressão e o preconceito na cabeça dos escolares.
Abaixo, uma mostra desse traço na cultura brasileira.

FERNANDO SABINO

A ÚLTIMA CRÔNICA

              A Última Crônica

                     Fernando Sabino


  A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café 
  junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. 
                                     
                                     
  A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou 
do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, 
   que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao 
   episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de 
esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, 
torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. 
Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o 
verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último 
poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar 
     fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. 
                                     
                                     
     Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de 
       sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha 
de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas 
curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres 
  esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da 
família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam 
                   para algo mais que matar a fome. 
                                     
       Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro 
     que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, 
inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um 
    pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando 
 imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta 
para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a 
      reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu 
 lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão 
 apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo 
    simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia 
                             triangular. 
                                     
        A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. 
Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e 
      filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O 
 pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os 
                         observa além de mim. 
                                     
       São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta 
 caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, 
 o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto 
ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra 
 com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. 
    A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas 
  e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura -- 
 ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de 
    bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, 
      satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da 
    celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se 
encontram, ele se perturba, constrangido -- vacila, ameaça 
abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se 
                          abre num sorriso. 
                                     
        Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura 
              como esse sorriso. 
                                     



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