Eliodora
Eliodora e os dois pardais
Quase que Eliodora não conseguia acreditar na angústia que lhe assomava o peito a revisitar o seu intimo e o seu semblante.
Não poderia jamais imaginar que sentiria aquele sentimento agridoce que lhe pulsava o coração nos ouvidos, colocava duas manchas rubras em sua face e lhe fazia um tremor nas pernas que lhe liquefazia.
Alonso,o objeto de seus suspiros ignorava sua existência como se ignorasse a mancha de café rotineira da toalha de mesa, que logo era substituída pela funcionária ou as migalhas de pão que serviam de alimento para os passarinhos que batiam ponto todo dia na janela do refeitório.
Eliodora colava o nariz arrebitado na vidraça, as duas bochechas e a boca e ficava observando dois pardais que se alimentavam das migalhas de pão que Alonso ou outro deixava sobre a toalha da mesa.
Tinha um desejo insano de querer ser um desses pássaros e compartilhar das migalhinhas , em um desejo antropofágico dela por Alonso, fundir-se como alimento,como essência, não precisando exatamente se era alimento ou se era alimentada.
O mundo explodia lá fora, entre cores e imagens, caleidoscópios e fragmentos, vida e morte, saudade e saturação de presença,frio, calor, tristeza e alegria, agonia e êxtase, barulho e silêncio e dentro do corpo de Eliodora uma outra explosão que ela preferia ignorar,pois eram muitas memórias e o mover do mundo,a natureza de mulher, instinto biológico, afetos e angústias que ela poderia, se não fosse demasiado humana, ignorar.Sua subjetividade fez com que suas regras menstruais viessem mais cedo por aqueles dias.Sentiu-se fecunda.
Era o aparato biológico, era um funcionamento previsível.
Em tudo lembrava outra personagem que recebeu o ser mulher em meio a um raio quente de sol, nas asas de uma águia, em um sonho onde acolheu sua feminilidade e ao despertar, a mancha rubra despontando entre lençóis.
Alonso não sabia de nada disso, nunca iria saber.
Sua palidez e seus joelhos magros, as preces sem término em cima de um estrado,as gotas de suor escorrendo pela face,como o sangue rubor de Eliodora,já denunciavam sua vocação.
Vocação,no latim vocare, o chamado.
Iria ser Padre. Já estava com vinte e cinco. Jamais havia sido atraído por mulher alguma. As mulheres não lhe interessavam nem um pouco.
Seres barulhentos e frívolos, como os pássaros que lhe importunava toda manhã, ao disputar as migalhas de pão,com seus chilreios altos.
Tinha uma vaga gratidão da matriz, mas como o Senhor,era ríspido com ela, que se demorava muito ao telefone,querendo saber se tinha cobertores suficientes.
__Que queres tu, mulher? Minha hora não chegou.
Mamãe tinha uma mania de colecionar fotografias de bebês sorridentes e olhava de soslaio para Alonso,talvez,idiotamente,imaginando quantos netos ele iria lhe dar.
Nenhum.
Daria-lhe filhos. Filhos do mundo. Pessoas de suas paróquias, envolvidas em seus pecados, mulheres tolas com suas proles,homens carregados com suas concupiscências, suas raparigas disputando com as esposas um lugar no bolso e no coração dos homens.
E Eliodora vicejava. Cada dia mais robusta, cabelos longos até a cintura, decote pronunciado, caminhando com passos estudados para prender a atenção de seu alvo.
Alguém também tinha planos para Alonso.
Não podia esquecer o seu cabelo negro, brilhante e seus olhos expressivos, da cor de mel, as suas mãos sensíveis,o seu jeito tímido,a sua mania de inclinar a cabeça para o lado quando ficava pensativo.
Tinha por Alonso o mesmo apreço ciumento que tinha pelo seu anel de religioso de alta hierarquia.
Imaginava-o erudito, poderoso, ensinando e levando adiante os ensinamentos que ele deveria receber de Alguém.
E assim se fez.
Um belo dia, Alonso juntou seus poucos pertences e retirou-se daquele lugar.
Ao seu lado, imponente, caminhava seu superior ,com a mão cheia de anéis em seu ombro.
Alonso, ombros erguidos, de forma elegante, orgulhoso de si mesmo, lançava a poeira de seus pés para trás,abandonando aquele lugar, para um outro, de imponência e luxo que lhe era merecido.
Eliodora espalmou as mãos na mesma janela de todas as manhãs, e, pranto convulsivo, deixou fluir toda a espera, toda a ânsia, todo o desejo, consumindo-se, até o vulto de Alonso dobrar a esquina.
Iam-se os homens, descendo a rua, satisfeitos consigo mesmo e Alonso não teve misericórdia de olhar para trás.
No seu desespero, sentou-se a mesa,procurando se recompor e uma sensação hilariante rompeu-se dentro de si.
Gargalhou ferozmente,dentro de sua desesperança,e lembrou-se de algo que a fez rir desesperadamente:
Eram dois os pardais.
E ela, ao arrancar suas unhas e penas, voava pela primeira vez na vida.
Virava águia.
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