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domingo, 25 de abril de 2010

Partilhas

“Já se disse que o homem surgiu quando a primeira canção foi cantada. Mas eu imagino que a primeira canção foi cantada ao redor do fogo, todos juntos se aquecendo do frio e se protegendo contra as feras. Antes da canção, o fogo. Um fogo aceso é um sacramento de comunhão solitária. Solitária porque a chama que crepita no fogão desperta sonhos que são só nossos. Mas os sonhos solitários se tornam comunhão quando se aquece e come.”(Rubem Alves)






Sonhos partilhados e pão negado



A reescrita da vida acontece quando me deparo com as obras do Rubem Alves e que como Funnes, o memorioso, remeto-me a lembranças do passado.

Não que eu não queira esquecer ou que as lembranças me incomodam. São pálidos fantasmas do passado, mas eu acho que eu aprendi muitas coisas da vida olhando o fogo.

O fogo era belo e eu entrevia imagens nele que o meu coração de criança me permitia imaginar que eram reais;

Eu via contornos de coisas imaginadas e meu cérebro dava formas a elas.

Fiquei então sabendo nas aulas de catecismo que o inferno era feito de fogo e que o ser que habitava as profundezas também era representado pelo fogo.



E eu não conseguia deixar de gostar do fogo, pois nas noites frias de inverno, a tentativa era  a de fazer acender as achas de lenhas úmidas, colhidas na plantação e eucaliptos, pois não tinha luz elétrica e quando acabava o fósforo, (e logo acabava, pois os ventos fortes não deixavam acesa a chama da lamparina) o último recurso era a brasa do fogão de lenha adormecido, debaixo das cinzas.

E quando o fogo começava a crepitar todos se aquietavam, e mãe e  pai paravam de discutir, pois era só ali em torno do fogo que estava confortável.

E ali que sentíamos que éramos uma família e mais tarde, descobri que éramos seis, e a vida já tinha reescrito a nossa história no romance de Dupré.

Ali, perto do fogo, eu aprendi a dar valor ao que nos unia, que era o amor e que sem isso por mais dinheiro que tivéssemos nenhum de nós iria sobreviver.

Quando a família se aquietava, meu pai, com voz embargada, começava a dizer que ele iria mudar, que iria parar com aquilo que era seu vício e que a mãe devia perdoá-lo , pois ele nos amava.

Todas essas coisas aconteceram perto do fogo. E a vida fizera uma reescrita da nossa história com um tal de Irineu Funnes, já que meu pai se chama Irineu. Irineu Rodrigues Almeida.

Na infância, nos bancos escolares conheci Dupré pela sua escrita e no romance tinha uma família com seis pessoas e tal como na vida real o amor que os unia não dava a compreensão total, mas era o vínculo de união.

Na Faculdade, conheci a história de Funnes, com a Ilíada e me incomodei um pouco, pois esse sujeito além de se apropriar do nome do meu pai também rememorava as coisas como ele.

O egocentrismo estava se desfazendo.

Quantas coisas da nossa criança interior carregamos e em certas coisas nunca deixamos de crescer totalmente;

A sopa quente, o alimento confortava o corpo e o espírito.

E foi em volta do fogo.

Conheci outras facetas do fogo. O fogo do Batismo no Espírito Santo de Deus, o fogo nas faces quando se apaixonava, paixão de menina, rubor.

E descobri que as coisas não são em si mesmas, boas ou más.

Nós que as trabalhamos para que elas se tornem úteis e preciosas;é a nossa mente, o nosso referencial, são as nossas projeções.

E a força do fogo que derrubou os aspectos primitivos da vida ancestral no processo civilizatório me tira da alienação de não ter poder em um mundo como o nosso e me dá a noção que o fogo subjetivo mostra a minha força em tecelã da palavra, ou como diria alguém, artesã da palavra.

Esse é o meu poder e ninguém vai me tirar, já que está inacessível.

Quando Walcyr Carrasco escreveu “Hoje é dia de Maria”, senti que retalhos da minha história estavam sendo tecidos ali.Agradeço infinitamente por ter reescrito parte da trajetória subjetiva dos meus fragmentos.

Não vão me identificar ali, continuo sendo anônima, mas eu não quero ser celebridade.

E há chances de que mais pessoas venham a se reencontrar nessa história, que é a história do Brasil e Maria é a nossa Alice do Pais das Maravilhas e Walcyr é o nosso Lewis Carrol;

E absolvo os autores que reescrevem histórias partindo das fragilidades das pessoas aparentemente sem poder, como eu.

Somos a pedra bruta na mão dos artífices reconhecidos autores. Nós somos o seu alimento.

A Justiça da não partilha só Deus pode resolver;

O sonho é partilhado, o pão não.

Mas a memória histórica não se perde.

E tudo em volta do fogo; Obrigada, Deus. Obrigada, Rubem Alves.Obrigada, Walcyr.


http://www.youtube.com/watch?v=UJzBl1zJdO0

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