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domingo, 11 de abril de 2010

Em defesa do Papa

O papa não é o novo Judas



In: Folha de Jundiaí
Tipo de texto: Artigo


GABRIEL CHALITA

"Pedofilia é pecado e é crime. Pecado mortal e crime hediondo. Merece repúdio e sanção. Ato abjeto, condenável, qualificado na esfera legal como singular exemplo de hediondez. Se na instância religiosa obtém-se o perdão mediante honesto remorso e firme propósito de não mais pecar, no âmbito legal o castigo é a inevitável segregação da liberdade.



O Código Penal contempla a figura do atentado violento ao pudor - artigo 214 - o assédio sexual - artigo 216 - e a corrupção de menores - artigo 218, tipos suscetíveis de enquadramento da conduta do pedófilo. Nas disposições gerais pertinentes aos crimes contra os costumes, abriga a presunção de violência se a vítima é menor de 14 anos, alienada ou débil mental e o agente conhecia esta circunstância e não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência - artigo 224. Além disso, a pena é aumentada de quarta parte se o agente, a qualquer título, tem autoridade sobre a vítima - artigo 226. Essa é a situação perante as normas religiosa e humana. Conhecer o fato, conhecer o seu autor, conhecer a lei. São as condições mínimas para se concretizar a justiça dos homens.



O atual estágio civilizatório se erige sobre postulados arduamente conquistados, dos quais não se pode abrir mão, sob pena de retorno à barbárie. A opção pelo processo judicial já consiste em escolha ética, a substituir a justiça de mão própria ou o linchamento, este quando parte da comunidade toma a si a tarefa do carrasco.



Dentre os dogmas do processo penal contemporâneo, situam-se o contraditório e a ampla defesa e o princípio de que a sanção incidirá sobre o criminoso e não resvalará sobre outras pessoas. Inadmissível, em nossa era, transigir com a singela dicção: a pena não passará da pessoa do criminoso. O eixo da individualização da responsabilidade parece ter sido afetado nestes dias, por uma teimosa insistência em atribuir a Bento 16" culpa que ele não tem. A pedofilia teve início na noite dos tempos. É mais um traço da miserável condição humana e a Igreja nunca pactuou com ela. Quem poderia indicar algum religioso - de qualquer confissão - que a tenha louvado?



Em seu pontificado, o Papa reiterou o repúdio em relação a qualquer inobservância aos preceitos evangélicos. Firme na ortodoxia, já foi taxado de conservador e se receava um retorno ao anacronismo, à época em que eleito pelo Colégio Cardinalício. Eis que se surpreendem os incrédulos. Sua primeira Encíclica foi sobre o amor. Mostrou-se magnânimo, terno e afável. Amigo das artes, dos artistas, do belo e do lúdico.



Em relação à pedofilia na Igreja, nítida a sua consternação. Pediu perdão às vítimas, lamentou que mais essa chaga continuasse a ser acrescentada ao atemporal sacrifício do Salvador. Aquele que Se imolou para redimir a humanidade. Diante disso, como se justifica o furor em execrá-lo, se não é pedófilo, se perfilhou - como não poderia deixar de fazer - frontalmente contra esse crime - se nunca se acumpliciou com os que chafurdaram nessa lama?



Aponte-se um fato ocorrido no curso de seu pontificado e que não tenha merecido resposta da Igreja. Acusá-lo em relação a práticas anteriores é arremessar sobre seus ombros, já sacrificados pela carga imensa de responder pelos desafios da Igreja de Cristo num século turbulento, o peso insuportável do injusto flagelo. Nem se invoquem omissões passadas. A função exercida pelo Cardeal Ratzinger na hierarquia da Igreja Católica, durante o longo período sob João Paulo II, era zelar pela Doutrina da Fé. Foi ele quem sistematizou e atualizou a normatividade a que se deve submeter a comunhão dos fiéis. Seu desempenho foi modelar, com estrita fidelidade à verdade evangélica, sem se curvar às pretensões de quem reclamava um aggiornamento desconforme com as exigências cristãs.



A Doutrina da Fé não equivale e nem possui as atribuições de uma Corregedoria Eclesiástica. Ratzinger é um pensador, um respeitado filósofo, reconhecido autor de uma obra consistente. Já integrava a Pontifícia Academia Vaticana de Ciências, seleto grupo de intelectuais de todo o mundo, sem distinção de crenças e dentre os quais figuram muitos galardoados com o Prêmio Nobel. Causa perplexidade que tantos se satisfaçam com explicações psicológicas para os desvios de comportamento, se oponham à distinção binária entre o permitido e o proibido, e, simultaneamente, sejam tão severos em relação a Bento XVI. Aqui não se invoca a presunção de inocência, nem se insiste no exaurimento do contraditório. Duplo perigo: usar de diferentes pesos, de distintas medidas, perante situações que, ontologicamente, ostentam um núcleo comum.



Os pedófilos precisam de corretivo. Sabem que procedem erradamente, caso contrário agiriam às escâncaras. Mas os infratores são eles, não o Papa. Este é o chefe de uma Igreja que tem milhares de sacerdotes santos, de leigos a caminho da santificação. Mas que é instituição humana, também falível e pecadora. E que, definitivamente, não é a instância encarregada de julgar os infratores da lei penal. A Semana Santa, que a mídia prefere chamar de "feriadão", neste ano de 2010 representou um espinho a mais na coroa de Cristo: a tentativa de fazer de Seu representante o antigo "bode expiatório" do sábado de Aleluia. Regredir em termos de princípios é muito grave. Desestrutura os alicerces da civilização e acelera a marcha-ré que parece remeter o mundo rumo ao caos."







GABRIEL CHALITA é docente universitário, doutor em Filosofia do Direito e Semiótica, ex-Secretário da Educação de São Paulo e Presidente do CONSEDE, além de vereador da Capital Paulista.







JOSÉ RENATO NALINI é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e Presidente da Academia Paulista de Letras

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